Em artigo, sócias da ABPEducom refletem sobre políticas públicas midiáticas e de acesso digital no ano em que ECA completa três décadas

Por Cristiane Parente e Mariana Ferreira Lopes

No dia 13 de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), considerado uma das mais avançadas leis do mundo, completou 30 anos. Entre conquistas e desafios, acreditamos que a Educomunicação pode ser uma importante ferramenta para seu aprimoramento e, especialmente, para a garantia do direito à comunicação desse público.

A promulgação do ECA, em julho de 1990, é marcada por uma intensa mobilização social que foi responsável pela inserção do artigo 227 na Constituição Federal (CF) de 1988. Desde então, crianças e adolescentes são considerados sujeitos de direito, em condições especiais de desenvolvimento e responsabilidade das famílias, da sociedade e do Estado.

A CF estabelece, desta forma, tal público como prioridade absoluta, ou seja, a primeira razão de ser do Estado. Isto que significa que a condição de cidadãos plenos não deve apenas constar no papel ou no discurso, mas na gestão dos diversos orçamentos e nos planejamentos públicos para o atendimento de suas necessidades, inclusive aquelas ligadas à comunicação enquanto direito humano.

Tendo como base reflexões trazidas pela ANDI Comunicação e Direitos no “Congresso digital 30 anos do ECA”, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pesquisas recentes como a TIC Kids Online Brasil 2019 e a situação do sistema brasileiro de mídia em termos de regulação, além do estabelecido no ECA, destacamos alguns pontos que consideramos relevantes e convidamos a uma reflexão sobre os desafios do Estatuto na garantia ao direito à comunicação e a contribuição que a Educomunicação pode dar nesse sentido.

Se nos voltarmos ao Capítulo 7 da Constituição Federal — Da Família, Criança, Adolescente e Idoso —  reconhecemos seus frutos em termos de legislação infraconstitucional: o ECA (1990), o Estatuto do Idoso (2003), o Estatuto da Juventude (2013) e o Marco Legal da Primeira Infância (2016).  Um contraponto ao que temos nas questões sobre a comunicação tratadas no Capítulo 5 e aos entraves para sua efetiva legislação e regulação. O que se torna ainda mais desafiador se levarmos em conta os avanços tecnológicos e as reconfigurações midiáticas das últimas três décadas, já considerados em legislações internacionais acerca da liberdade de expressão e do direito à comunicação, por exemplo.

Parece-nos, portanto, que falar de direitos de crianças e adolescentes e sua relação com o direito à comunicação implica refletir sobre a situação atual dos meios de comunicação brasileiros e sua (falta de) regulação democrática.

Sobre o direito de crianças e adolescentes à comunicação

Se por um lado temos uma das mais avançadas leis do mundo no que se refere aos direitos de crianças e adolescentes – instaurando a Doutrina da Proteção Integral em substituição à Doutrina da Situação Irregular do antigo Código de Menores, assistencialista e punitivista -, por outro, temos lacunas em relação à legislação voltada à comunicação no país. Um descompasso que gera profundo impacto para os direitos de fruição, proteção e participação deste público – tema de preocupação e foco da Educomunicação – , além de incertezas e brechas quanto ao mundo digital.  

A falta de estrutura, da perspectiva legal, acaba assim por atrapalhar a discussão e a concretização da cidadania comunicativa desses sujeitos. E há vários exemplos nesse sentido, sendo um deles o artigo 5 da CF, sobre a proibição de monopólios ou oligopólios de comunicação no país, para a garantia da liberdade de expressão e pluralidade de vozes. Um artigo que quando confrontado com a caracterização de nosso sistema midiático demonstra que tal determinação é letra morta na Constituição.

Imagem: Ben Mullins/Unsplash

Outro ponto, desta vez relacionado ao artigo 221 da Constituição, consiste na indicação de que as emissoras de rádio e televisão devem dar preferência a programações artísticas, educativas, informativas e culturais, regionalizar a produção cultural e respeitar valores éticos, entre outros tópicos. Não é difícil constatar, porém, que as emissoras não só renegam essa indicação, como as crianças possuem pouco espaço em sua programação, inclusive como sujeitos participativos na construção de espaços midiáticos. Participação essa defendida pela Educomunicação na formação de sujeitos mais críticos, criativos e autônomos em sua relação com os meios.

Segundo Veet Vivarta, ex-secretário executivo e hoje consultor da ANDI, temos o que se considera um “déficit democrático” quando se trata de comunicação no país. Apesar de vários projetos de lei na área tentarem avançar, não conseguem ultrapassar as barreiras e os lobbies das mídias, empresas privadas e interesses econômicos. Por consequência, acabam não contemplando crianças e adolescentes que, afinal, deveriam ter seus direitos garantidos como prioridade absoluta.

Para além do que já discutimos aqui, as tentativas de regulação dos meios de comunicação são, em geral, confrontadas com campanhas massivas relacionando a regulação como prática de censura. Temos como exemplo a Classificação Indicativa, uma iniciativa fruto de um intenso debate com vários setores tornando-se um exemplo para muitos países, mas confrontada por parte das associações e empresas midiáticas.

Condições de acesso à internet

A questão da cidadania comunicativa de crianças e adolescentes não pode deixar de lado a discussão sobre a estrutura de acesso à internet no país, bem como as habilidades demandadas para seu uso consciente e propositivo. Debate que se faz ainda mais urgente no atual contexto da pandemia, no qual o direito à educação depende cada vez mais do manejo de plataformas digitais.  

Temos de considerar o acesso universal à internet no Brasil como condicionante do  direito à comunicação de crianças e adolescentes. Infelizmente, o modelo de inclusão digital é baseado no interesse mercadológico e caracterizado pela limitação do acesso e sua baixa qualidade.

Segundo os dados da TIC Kids Online Brasil 2019, divulgados em junho de 2020, 89% da população de 9 a 17 anos é usuária de internet no Brasil. Ou seja, há cerca de 24,3 milhões de crianças e adolescentes conectados, não necessariamente com qualidade de conexão. Porém, o número cai em áreas rurais (75%), nas regiões Norte e Nordeste (79%) e entre as classes D e E (80%).

Apesar de demonstrar um incremento em relação aos estudos anteriores, é importante destacar a desigualdade que afeta 1,8 milhões de crianças e adolescentes não usuárias e 4,8 milhões de crianças e adolescentes que vivem em domicílios sem acesso à rede.

Outros dados que nos ajudam a compreender o contexto atual e a importância do direito à comunicação dizem respeito ao fato de o celular ser o principal dispositivo de acesso à rede por 23 milhões de crianças e adolescentes brasileiros (95%). Deste total, porém, 58% utilizam o dispositivo de forma exclusiva ou 75% se considerarmos as classes D e E.  

Mas a estrutura de acesso é apenas uma parte da questão. Há de se considerar igualmente o desenvolvimento de competências e habilidades de fluência digital, de um julgamento reflexivo sobre os conteúdos e a concretização da autoexpressão e participação. Uma questão que envolve a mediação familiar e os processos educomunicativos.

Entendemos que a questão midiática-informacional perpassa os desafios para a implementação dos direitos das crianças e dos adolescentes no contexto atual. A mobilização em torno do tema reflete igualmente a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) nas escolas, já que ela traz em suas dez competências gerais muito da educação midiática e cidadã aqui defendida. São de extremas relevância e urgência, portanto, a efetivação de políticas públicas de Educomunicação que possibilitem a formação contínua de professores, educandos e suas famílias tendo em vista a consolidação do direito à comunicação no Brasil.

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Cristiane Parente é Jornalista Amiga da Criança (ANDI/Unicef), educomunicadora e professora. Doutora em Comunicação pela Universidade do Minho, mestra em Comunicação, Cultura e Educação pela Universidade Autônoma de Barcelona e mestra em Educação pela Universidade de Brasília. Sócia-fundadora da ABPEducom e sócia-diretora da empresa de consultoria Iandé Comunicação e Educação. E-mail: cristianeparente.edu@gmail.com. Instagram: @crisparente1.

Mariana Ferreira Lopes é jornalista, educomunicadora e professora universitária. Doutora em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista e mestra em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina. Sócia da ABPEducom e sócia-diretora da Iandé Comunicação e Educação. E-mail: flopes.mariana@gmail.com.

Foto: CDC/Unsplash

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