Texto de Michel Carvalho, especial para ABPEducom:
A 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deixa como grande marca a tentativa de uma programação inclusiva, com uma composição mais igualitária e representativa do que é a sociedade brasileira. Tendo como grande homenageado o escritor negro Lima Barreto, o evento ofereceu 22 mesas de discussão com 46 autores, entre eles, 24 mulheres. Entre os escritores convidados, 30% foram negros.
Por conta da diversidade entre os autores convidados, foi natural que a Flip deste ano promovesse discussões acerca de preconceito, identidade, representatividade e feminismo. Em vários momentos, o evento reverberou um discurso mais político e engajado, com críticas ao governo federal, ao sucateamento da UERJ e ao avanço do conservadorismo no Brasil. Muita gente chegou até a reclamar que a Flp teria relegado a literatura a segundo plano, priorizando o debate em torno de temáticas sociais. Mas a pergunta que fica: e tem como dissociar uma coisa da outra?
A própria escolha de Lima Barreto (1881-1922) representa, de certa forma, um ato político. Muito conhecido pelo romance “O triste fim de Policarpo Quaresma”, o autor nunca foi devidamente reconhecido na literatura brasileira. O escritor que lançava um olhar crítico sobre as injustiças sociais do país e a questão do preconceito de cor teve sua obra revisitada por diferentes debatedores durante a Flip. Ao discutir seu legado, os intelectuais afirmaram que as histórias de Lima Barreto estão mais atuais do que nunca, principalmente quando pensamos na corrupção endêmica e na manutenção de privilégios por certas elites.
Apesar de o grande homenageado ter sido Lima Barreto deste ano na Flip, dificilmente alguém não associará essa edição à figura da professora aposentada Diva Guimarães. Ela fez um relato emocionado sobre o racismo que sofreu ao longo da vida durante uma mesa com a presença do ator e escritor Lázaro Ramos.
A professora arrancou lágrimas do ator e do público quando recordou um episódio de sua infância num colégio católico no interior do Paraná. Deus, segundo uma freira, havia criado um rio para que todos os seres humanos se abençoassem. Uns, mais trabalhadores, teriam chegado primeiro e, ao se banharem, ficaram brancos. Outros, preguiçosos, demoraram e encontraram o rio atolado em lama escura. Estes, puderam apenas lavar as palmas das mãos e as plantas dos pés, ficando com todo o resto do corpo preto.
A memória de Diva serviu para ilustrar como se estrutura o racismo nas instituições de ensino e como essa lógica discriminatória traz consequências marcantes na vida de uma criança negra. Lázaro Ramos, que comentava sobre seu livro “Na minha pele”, chegou a ficar sem palavras diante daquele potente relato. Recuperado da emoção, o ator disse que nossa maior crise não é política nem econômica, mas civilizatória. Aliás, o intérprete de Mister Brau (Globo) leu trechos de Lima Barreto na abertura do evento, ao lado de Lilia Schwarcz, que escreveu recentemente uma biografia sobre o autor.
Outro ponto alto dessa edição da Flip foi a mesa que reuniu Noemi Jaffe e Scholastique Mukasonga. As autoras comentaram sobre a memória de suas mães em contextos históricos marcados pela guerra e pelo extremismo. Ao relembrarem os dramas causados pelo nazismo e pelo genocídio em Ruanda, as duas escritoras falaram que escrevem tanto por necessidade quanto por dever. “O genocídio de Ruanda fez de mim escritora. A escrita foi um modo de dar uma sepultura aos meus, tirá-los da vala comum e construir uma sepultura de palavras, uma tumba de papel”, ressaltou Mukasonga, arrancando aplausos da plateia.
A nota triste da festa ocorreu com Anderson França, autor de “Rio em Shamas” e idealizador do projeto “Universidade da Correria”, que acabou participando da Flip por vídeo-conferência dentro da mesa “Literatura em todas as plataformas”. O escritor relatou nas redes sociais que foi ameaçado de morte. O anúncio de cunho racista prometia pagar R$15 mil para quem o assassinasse durante sua participação na Flip.
Apesar de toda maior representatividade negra e feminina dentro da Flip, o evento ainda é dominado por grupos seletos. Desses, três são facilmente identificáveis durante a festa literária: madames (que perdem a elegância na hora dos selfies com as celebridades), professores (estão sempre anotando tudo) e amantes vorazes de livros (que fazem as perguntas mais complexas e demoradas). Vemos poucos estudantes de ensino médio e de escolas públicas. As crianças já contam com um ambiente na Flipinha, mas a contação de estórias, por exemplo, poderia ter mais espaço no evento. Mesmo sendo uma festa, a Flip deveria pensar em formações para educadores a fim de estimular a formação de novos leitores.
A Flip deste ano chega ao fim discutindo, de um lado, a arte militante, engajada, atravessada por discursos emancipatórios; de outro, o resgate de uma literatura de autor, centrada mais no estilo e nas histórias a contar, e menos nas consequências simbólicas da obra. Nesse ponto, não há unanimidade. O que podemos afirmar, com certeza, é que mais gente quer participar da festa, não é Dona Diva?